Translate

domingo, 20 de setembro de 2015

Mulher

Nasci e já ganhei uma manta rosa para sair da maternidade. Ao chegar em casa fui recebida numa mistura de festa e pesar, pois é como dizem – mulher sofre na vida; e não é pouco.
Comecei a andar, correr, pular, mas não como eu gostaria. Precisei me comportar. Sentar de pernas fechadas porque é feio menina – ainda que na inocência da infância- mostrar a calcinha.
Ganhei os primeiros brinquedos. Fogão para cozinhar, ferro para passar, pia para lavar as louças e bonecas para cuidar. Diversão acompanhada de obrigação. Eu até disse que prefiro aquela ferrovia elétrica que meu irmão mais velho ganhou ou aquele carrinho que dá corda e ele anda até pelas paredes. Mas me disseram que essas coisas eram coisas de menino. Precisei me comportar. Fingir que preferia o lilás para não usar o rosa, mas amando secretamente o azul.
Cresci com meu cabelo comprido. Acima dos ombros, sempre com algum enfeite que diferenciasse meu sexo, como se cores e formas pudessem ser capazes de me descreverem.
Na adolescência descobri que gosto de meninos. Que tenho desejo aflorado e que gosto de sentir prazer. Mas quando quis experimentar o sexo me acusaram de pecar. Contra a carne. Contra Deus. Contra mim. E apesar de ver o meu irmão recebendo elogios por ter tido a primeira vez ainda cedo, precisei me comportar.
Casei-me virgem. Descobri que gostava de me masturbar. Um dia, meu marido viu e me reprimindo, disse que aquilo era coisa de mulher vagabunda. De vadia. De quem não tem homem em casa. Disse que ele era suficiente para me satisfazer, mesmo sem nunca ter tido um orgasmo sequer com penetração. Uma vez pedi por sexo oral. Perguntou onde eu tinha visto tamanha putaria. Me calei, me fechei. Ele tinha nojo, dava pra perceber. Precisei me comportar.
Eu quis trabalhar. Terminar os estudos e entrar pra faculdade. Mas a igreja diz que não posso evitar filhos, então engravidei pouco tempo depois de casada. Tive um menino – orgulho do pai-, e uma menina – mais uma pra sofrer no mundo.
Minhas funções dobraram. Cuidar de limpeza da casa, roupa, comida, filhos, e a noite estar depilada, mas sem ousadia, para servir o meu marido na cama.
Muitas noites sem dormir direito. Muitos dias extremamente difíceis. Sinais de cansaço em volta dos olhos, na testa, ruga de preocupações, e nos lábios, tristeza que eu tentava esconder, mas que insistiam em aparecer nos borrões do meu batom claro e velho.
Ansiedade, obesidade, cabelo desidratado e dentes começando a doer por falta de cuidado. O tempo era complicado e eu não podia gastar o dinheiro à toa. Eu quis buscar por ajuda, mas minha família disse que uma boa esposa não enche a paciência do marido, afinal ele trabalha, provém a casa, precisa de paz no lar. Precise me comportar.
Não tive outros filhos. Endometriose. Meu marido começou a me maltratar.
O primeiro beijo a gente nunca esquece, o primeiro tapa também não. Nem a primeira marca que a gente tenta esconder com roupas mais densas. Um dia fui a delegacia, mas lá ouvi que a culpa é minha, afinal, eu permiti as agressões e agora devo aguentar. Precisei me comportar.
Ele disse que vai mudar. Eu acreditei. Acreditei inclusive que se eu não fosse tão insuportável não apanharia.
Certa vez percebi sangue quando fui espirrar. Tuberculose. Início de tratamento, conforme investigações descobriram que tenho AIDS. Nunca traí meu marido, nunca compartilhei agulhas e nunca recebi sangue. Foi ele quem me transmitiu. Confessou que pegou na zona que frequentava. Disse que precisou buscar fora o que não tinha em casa.
Ele convive normalmente com a doença. O organismo se adaptou fácil ao coquetel. Tem uma aparência saudável e nesse momento está viajando pro nordeste para aproveitar as férias.
Eu, agora na UTI, respiro com dificuldade, pois meus pulmões já foram tomados pela doença.
Às vezes cochilo por causa da medicação para dor e acordo com vozes a minha volta dizendo:
- Se tivesse se comportado, não estaria aqui entre a vida e a morte.
Então relembro minha infância e me pego gritando pela madrugada após pesadelos recorrentes:
-Me deixe escolher? Eu prefiro o azul...

Nenhum comentário:

Postar um comentário