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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Certidão de Existência

Numa tarde de dezembro, João e Maria estavam aflitos no ponto de ônibus. Horário de pico, sol forte na cabeça, que já estava quente o suficiente com a história a ser resolvida. O tio avô de Maria falecera há pouco tempo, mas o inventário ainda não tinha sido aberto.
Na calçada escaldante do Bom Retiro, João pergunta à Maria:
- Como é, foi ao cartório?
-Fui sim. -Sussurrou a moça cabisbaixa.
-E daí, falou com o José sobre o inventário?
-Ele não estava, mas o Júlio me atendeu.
-E o que ele disse?
Nesse instante, os olhos de Maria denunciavam seu cansaço. O sol forte, o calor, parecia que tudo cooperava para aquela situação de frustração de quem está cansada de ir e vir de repartições públicas para provar o parentesco com o famoso dono de uma das maiores empresas agropecuárias do interior de São Paulo.
Angélica era sobrinha neta por parte de pai, que a abandonou ainda na barriga da mãe. Após o falecimento de D. Luíza, começou a investigar, já que se viu sozinha no mundo, quem seria seu pai ou qualquer parente ainda que distante. Menina pobre que morava na periferia de São Paulo, Maria era filha da empregada com quem o patrão teve um caso escondido, que faleceu meses após a descoberta da gravidez num acidente de carro, sem deixar outro herdeiro.
O cansaço de Maria não era só físico.
-Faltou minha Certidão de Nascimento, João, e eu tenho certeza que já levei pra lá!
-A Certidão? Então você terá que falar com a Rose, a moça com quem você deixou todos os documentos semana passada.
-O pior é que o Júlio me disse que acha que ela perdeu.
-E perdeu onde?
-Lá no cartório mesmo. Não há outra explicação João, quem roubaria uma Certidão de Nascimento?
O ônibus encostou no meio fio. Dava pra ver que o destino havia roubado o brilho nos olhos de Maria, mais do que isso, o destino roubou a infância de uma criança que precisou amadurecer pra cuidar do câncer da mãe desamparada pelo Estado. Roubou a adolescência de uma moça que precisou largar os estudos e trabalhar em casa de família seguindo os passos da mãe pra não passar fome. O ônibus chegou e a sua realidade conduzia sua vida rumo à favela.
Órfã, Maria tentava provar para o sistema que ela existia, mesmo ele fazendo questão de mostrar o contrário.

domingo, 15 de maio de 2016

Atenção, contém amor.

Encontramos rótulos em quase tudo na vida. Nas gôndolas de supermercado quando vemos a porcentagem de carboidratos em determinado alimento, em produtos de limpeza pra saber de algum componente que cause alergia.
O problema é que temos a prepotência de rotular sentimentos. E ao tentar enquadrar sentimentos aos rótulos impostos pela sociedade, diminuímos o que de maior existe em nós: a capacidade de amar.
O amor não é só uma palavra. Amar não é um verbo pra conjugar sozinho.
Por tantos outros motivos, me recuso a minimizar o amor num amontoado de palavras escritos num contrato social.
No amor, um não pertence ao outro por pressão, mas antes, se doam sem precisar que o outro peça. É como se ambos estivessem presos um ao outro através da liberdade que o próprio amor proporciona.
Dizer o que é certo e o que é errado só é válido aos que se amam e se relacionam, portanto, pressionar as pessoas para assinarem papéis para provarem à sociedade que têm um compromisso é o mesmo que comprar uma peça de roupa e deixar a etiqueta à mostra para dizer que ela lhe pertence.
E nem as pessoas, nem o amor são peças de roupa ou objeto pessoal para sequer pensar que possuímos.
Amar, consiste antes de tudo, em prezar pela felicidade e bem estar de quem amamos enquanto construímos um relacionamento sólido o suficiente pra suportar as tempestades que a vida proporciona.